sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Rumo das Cores Vivas


Saí de casa bem cedo, como era meu costume, a passo rápido para não perder o autocarro. Equipada com os meus auscultadores, deixava para trás os sons mais banais da vida como ela é e mergulhava na melodia cadenciada da vida sob a minha perspectiva. O engenho estreito e delicado, que tão bem se encaixava no bolso interior do meu casaco, protegia-me eficazmente de eventuais contactos do meu interior abstracto com o exterior concreto. Entre os dois pólos da minha existência, observava a vida a decorrer ao ritmo que lhe impunha eu.

A paragem era logo ali, ao dobrar da esquina.

Como todos os dias, descia pela calçada, primeiro por baixo das arcadas, passando diante da capela mortuária e da igreja que se escondiam dentro e debaixo da estrutura cinzenta do prédio adjacente ao meu, como duas grutas escuras e frias para um nada, e da cervejaria comprida e cansada, onde as gentes que se repetiam no meu bairro bebiam a bica matinal, imersas nas suas vidas interiores. Depois, atravessava a estrada, em viés.

Uns metros mais à frente, aguardava a paragem, viva de pessoas, branca e cor-de-laranja, fria e esguia. Enferrujada, com o seu pequeno painel desgastado informando-nos trocista, acerca dos horários das carreiras que por ali passavam.

Esperava o “58 Príncipe Real”. Já sabia que, se viesse demasiado cheio, poderia sempre optar pelo “46 Rossio” (esse era o percurso mais curto, pois o mais comprido já não cabe na minha memória). Nesse caso, sairia nos Restauradores e seguiria caminho pela íngreme, mas revitalizante, Rua da Glória. Revitalizante com o seu elevador amarelo e velho. Velho por pertencer à excitante baixa da minha infância e amarelo porque assim eram os eléctricos da Lisboa das cores vivas.

E lá vinha ele, semi-atulhado. Se não tivesse nenhum passageiro esmagado contra o pára-brisas, entraria.

Entrei.

Demoraria entre 30 a 45 minutos a chegar ao outro lado da cidade, dependendo da boa vontade dos automobilistas e transeuntes lisboetas, naquela manhã. Dependendo do grau de clemência do clima. E dependendo da colorida lotaria dos semáforos.

Era assim que entendia. Que pré-visualizava aquele dia específico da minha vida até ali. E poderia ser um dia verde ou vermelho. Pelo menos, assim preferia, porque os dias amarelos eram por demais estranhos. Esquisitos. E, acima de tudo, indefinidos.

Era em Sete Rios que se iniciava tudo. Era aquele primeiro semáforo, da fronteira entre o meu mundo cartografado e o mundo que ia desbravando, lá fora. O mundo das coisas por descobrir. Das promessas de vida. O mundo das decisões tomadas.

Assim que o autocarro arrancava da paragem de Sete Rios, rumo ao novo dia, voltava-me para o semáforo, ansiosa por saber de que cor se vestiriam as horas seguintes da minha existência. Verde. Vermelho. Ou Amarelo…

Bastou um solavanco para perceber. O clarão amarelado passou por mim a correr. O condutor precipitara-se e transpusera a fronteira.

O semáforo de Sete Rios dera a sua sentença: o dia seria decisivo e passaria hesitante, da indefinição para a resolução. Da insegurança para a firmeza. E da incerteza para a determinação.

No Príncipe Real os humores eram sempre outros. Era no virar da rua D. Pedro V, para a rua da Rosa que a Lisboa bipolar saía do estado depressivo e entrava na fase esfusiante.

Era assim que eu entendia a cidade.

E aquele era o meu dia amarelo.

A Rua da Rosa cheirava-me sempre a pó e a comida.

Mas o ar era mais respirável e fresco. Era o meu próprio ar. E, ali, olhava para as coisas com a minha própria vista. No meu Bairro Alto, as vizinhas da velha Lisboa popular vinham à janela tagarelar com o extravagante vizinho de trejeitos femininos que se mudara recentemente para lá, e enchiam de verdade a minha manhã.

Sim, porque sem gente, aquelas janelas não eram janelas. E, fechadas, aquelas portas não eram portas. Inanimados, os prédios não passariam de muros que me impediam de chegar ao mundo lá fora.

Na escola de dança o ar cheirava a café torrado. Era um aroma palpável, voluptuoso e aveludado que pairava no ar e que entrava por mim dentro em agradáveis espirais de sensações.

Sentada lá fora, naquele pequeno espaço esquecido, por detrás do ginásio, consolava-me com o calor do sol, sentada sobre o cimento a contemplar com muita inveja o rapaz da escola de teatro, todo vestido de branco, que escrevia no seu caderno, sentado, lá em cima, no telhado do Conservatório Nacional.

Curvando-se à luz amarelada do semáforo de Sete Rios, o dia decorria aos solavancos. Naquele dia, adiantar ou parar faria muita diferença.

E foi precisamente nesse dia que estanquei.

Ainda hoje sinto o cheiro a café, dentro de mim, o cimento duro e áspero do meu poiso preferido, a roçar a minha pele, e o suave toque do sol no meu rosto.

Ao regressar a casa, ao fim da tarde, levei comigo todas as sensações que descobrira naquele rico e vasto universo que se estendia para lá do meu semáforo de Sete Rios.

A partir daquele dia o semáforo de Sete Rios estaria sempre vermelho.

Vermelho para mim.

Naquela direcção.

Importante passava a ser o semáforo seguinte, mais à frente e com outra orientação que, todos os dias, me indicaria a tonalidade de que se revestiria aquele troço do meu caminho.

Isso, até ao fatídico dia em que, tal como no de Sete Rios, o amarelo surgisse e desse lugar ao implacável vermelho, forçando-me a mudar de rumo, ou ao flexível verde, permitindo-me avançar um pouco mais, na mesma direcção.



Michelle MVH

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