sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A Família







“Do modo como a concebemos, a vida em família não é mais natural para nós do que uma gaiola é para um papagaio.”

Bernard Shaw





Neste novo ano de 2010, para abrir o apetite de debate de temas quentes, decidi reflectir um pouco sobre a família.

Lembro-me do ano da Família, que já não sei qual foi. Os devotos católicos compravam pratos com a Sagrada Família, para pendurar, orgulhosos, nas paredes das salas de estar, em posição de destaque, com contornos dourados a deslumbrar o visitante.

Entramos em qualquer lar tradicional e vemos pilhas e pilhas de fotografias de familiares. Por vezes, são tantas, que não resta um centímetro de parede sem uma moldura pendurada, ou um palmo de superfície horizontal sem um porta-retrato. Álbuns são aos magotes, juntamente com CD, DVD, slides (mais antiquado, admito), a preencher as prateleiras da casa. Agora também há cartazes, bolsas, T-shirts, canecas – tudo a ostentar os rostos felizes de membros da família.

Sempre que me confronto com exemplos de perfeita felicidade doméstica como estes, até sinto calafrios. Lembro-me imediatamente de reportagens sobre miúdos que massacraram colegas e professores em liceus, pais que mataram a família inteira à machadada, mães que afogaram os filhos, casais que se esfaquearam, balearam e agrediram à martelada. Isto porque, em geral, ao relatarem os antecedentes dos intervenientes em tais crimes, os repórteres apresentam-nos as fotografias do “Antes” que são fotografias dessas, com as pessoas em questão, rodeadas pela família, todos compostos, e ofuscando-nos com os seus sorrisos rasgados, os cabelos impecavelmente penteados e a roupa imaculada. Ou fotos instantâneas de pessoas em posições mais espontâneas e descontraídas, mas todas demonstrando-se em sintonia com os parentes que acabaram por chacinar.

Serão as fotografias uma imagem fidedigna da realidade, tal como ela é? Ou serão elas a cristalização de momentos orquestrados e concebidos para apresentar aquilo que não temos, mas com que todos sonhamos?

Estamos rodeados de publicidade, filmes, literatura e tudo o mais, promovendo a imagem da família como uma unidade harmoniosa. Mas quantas corresponderão realmente a esse conceito?

Creio que muitas das pessoas que enchem a casa de fotografias da família até ao ponto do enjoo, o fazem para se convencerem de que é isso que têm: amor dos familiares – a paz, a tranquilidade, o carinho, o afecto, a compreensão e o apoio que sempre ouvimos dizer serem intrínsecos à vida em família.

Constatamos, porém, que a maioria das famílias é disfuncional. Pelo menos, nesta sociedade. Há quem diga que isso se deve à perda de valores essenciais dos tempos modernos e ao facto de as mães passarem a assumir um papel activo na sociedade, deixando a educação dos filhos nas mãos de outrem. Pode muito bem ser isso, mas não podemos ser tão hipócritas a ponto de negar que, no passado, tenham existido famílias disfuncionais. Temos parricídios, fratricídios e todo o tipo de –ídios entre familiares, desde tempos imemoriais.

Será a vida em família viável?

Julgo que a maioria das pessoas desconhece uma verdade, no que respeita à regra do “Amai o próximo” – o facto de esse conceito ser precedido pelo conceito “Detestai o mais próximo” e sucedido pelo conceito “Idolatrai o menos próximo”.

Olhemos para a nossa sociedade – olhemos para todas as sociedades – e centremo-nos numa generalidade.

Quem são os primeiros a censurar-nos, a julgar-nos e a punir-nos quando cometemos um erro?

Para com quem demonstramos nós mais consideração?

Quem mais merece a nossa veneração?

No âmbito extremamente limitado da minha experiência, os membros da nossa família são quem mais se acotovela para estar na linha da frente do nosso pelotão de fuzilamento. Na hora da verdade, são geralmente os membros da nossa família que mais tendem a julgar as nossas acções, a não acreditar na possibilidade de mudarmos e a censurar cada uma das nossas escolhas. Estes são os nossos mais próximos. E normalmente são as pessoas mais próximas que mais capacidade têm para nos odiar ou desprezar, para nos manipular ou atraiçoar.

No dia-a-dia, tendemos a ser compassivos para com quem sofre, mas raramente nos damos conta que nos compadecemos mais do vizinho do que dos nossos próprios familiares. Inclinamo-nos a dar mais apoio moral aos nossos amigos do que aos nossos irmãos, por exemplo. Prontificamo-nos a ajudar mais os nossos primos, do que os nossos irmãos. Não digo que seja sempre assim, mas é muito frequente.

E quem idolatramos nós? De quem são, tantas vezes, as fotografias em maior destaque na nossa sala de estar e de quem tendemos nós a falar melhor? Dos vivos ou dos mortos? Pois é: dos menos próximos. Os nossos falecidos entes queridos e as nossas celebridades favoritas merecem as nossas melhores palavras e a nossa maior admiração.

É assim. Somos assim mesmo.

Acredito na família. Acredito nos laços familiares. Como também acredito na superioridade das afinidades sobre o sangue. Acredito no afecto. Acredito ser possível manter viva a chama da paixão num casamento. Como também acredito ser sempre possível mudar – mesmo que os outros nunca se disponham a aceitar essa mudança. Para tudo na vida é preciso empenho, esforço e dedicação. Não podemos querer tudo, sem nada fazer por isso. O bom ambiente familiar não é um dado adquirido. É preciso construí-lo, de preferência, sobre sólidas bases. Exige manutenção constante, anexos, alterações, remodelações, limpezas… e reconstrução, após um tornado inesperado.

No entanto, no meu entender, para funcionar como uma unidade harmoniosa, a família deve despir-se – lá está – de preconceitos, juízos de valor, regras pré-estabelecidas, ditames religiosos e imposições da sociedade. Da mesma maneira que não existem duas pessoas exactamente iguais – acredito que todos somos, efectivamente, Especiais e Únicos – não existem duas famílias perfeitamente idênticas. É nesse sentido que me parece ser uma enormidade tentar aplicar as mesmas regras e impor os mesmos valores a agregados com formas distintas de funcionamento. O que é bom para um, é prejudicial para outro.

O que é certo é que cada família tem de encontrar a fórmula mais acertada para encontrar a sua própria paz e harmonia. Esqueçam a regra de se darem todos bem, a todo o custo. As pessoas podem ser da mesma família, mas terem personalidades totalmente divergentes. Nesse caso – digo eu – há que pensar no que diz Gandhi, para que a convivência seja possível sem azedar os ânimos: tolerar não significa aceitar. A tolerância é tudo. Seja em que contexto for. A tolerância pela forma de ser do próximo, pelas suas motivações e pela sua maneira de estar na vida permite-nos coabitar com um certo equilíbrio.

Para concluir, opino que, para estarmos bem uns com os outros devemos ser, acima de tudo, tolerantes. Não devemos partir do princípio que todos pensam ou funcionam como nós, nem que a isso são obrigados. Como também não devemos julgar os nossos mais próximos, por nos considerarmos os maiores especialistas na matéria da sua personalidade. A maioria das pessoas não possui a capacidade para ler pensamentos ou a extrasensorialidade para sentir o mesmo que o seu próximo. Muito menos temos o dom de nos transformarmos literalmente em moscas para podermos observar o que se passa na intimidade de cada um. Então, por que estamos sempre tão convictos de sabermos bem o que se passa com os nossos familiares mais próximos e que somos quem melhor os pode julgar, precisamente por pertencermos ao mesmo clã?

Importante regra: a nossa liberdade acaba quando começa a do próximo. A família partilha o espaço físico que, por vezes, é demasiado reduzido, mas isso não implica necessariamente que se devam ultrapassar as fronteiras mais imperceptíveis da área pessoal de cada um. É esse o segredo para se estabelecer e manter a paz e a harmonia no seio familiar. Isto, claro está, na minha opinião de mero peão neste planeta.



2 comentários:

  1. Hoje ao entrar na área dedicada aos blogues de Portugal seleccionei o blogue da pessoa que tem pelo menos duas coisas em comum a mim.

    E ao ter entrado no blogue li a mensagem sobre A Família.

    A tua visão sobre a família: as experiências, as dúvidas e as questões despertaram a minha atenção, por partilhar de muitas referências mencionadas no texto.

    Penso que ao partilhares o que tens sentido sobre a relação "a família", ajudarás outros a pensar e a partilhar alguma experiência ou opinião relacionada com o assunto.

    Eu iniciei um blogue para ajudar a reflectir sobre a família. Tantos sentimentos e experiência (tanto minhas como de outros) culminam na certeza de que tudo tem inicio na família - as alegrias e as tristezas, os momentos de maior felicidade e infortúnio, a maior riqueza e miséria - os nossos melhores e piores momentos (talvez).

    Há molduras que contam maravilhosas histórias e que não deixam esquecer os momentos, os lugares e as pessoas que nos fazem sentir saudades ou desejo de ser feliz. Doces lembranças.

    Espero que haja sempre a esperança, e ainda que seja só em sonhos, de uma família feliz.

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  2. Concordo plenamente. Creio que todos nós temos muito a dizer sobre tudo o que nos é comum. A melhor forma de nos ajudarmos mutuamente é a partilha de experiências, o debate constructivo e a reflexão conjunta sobre aquilo que nos une ou separa.

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